DEUSA THEMIS

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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO “CRIME E CASTIGO” (FIÓDOR DOSTOIÉVSKI)





·                     A prostituição de Sônia e a passagem bíblica sobre a “Ressurreição de Lázaro”:


Em relação à personagem Sônia, Dostoiévski faz uma aversão entre o sagrado e o pecaminoso. Representam a paridade de impulsos opostos, mas partilham de comum alicerce: a moral religiosa e a moral idealista, contrapostas com a moral da sobrevivência e do existencialismo.
Sônia, apesar de ser uma pessoa com a moral completamente abalada diante da sociedade por viver na prostituição (meio no qual entrou influenciada pela madrasta e para suprir as necessidades básicas de sobrevivência dela e da família), é muito apegada à religião e amante da passagem bíblica que fala sobre a “Ressurreição de Lázaro” (a prostituição e a forte religiosidade, inclusive, inferem a ela traços que lembram a irmã de Lázaro, Maria Madalena).
Subentende-se que isto representa a crença dela de que há sempre a possibilidade de redenção (ressurreição) e que a religião pode ser uma possibilidade de vida, o que é demonstrado no trecho em que Sônia pensa, durante a  leitura desta passagem bíblica à Raskólnikov, “e ele, ele, igualmente cego e ímpio, ele também ouvirá e também acreditará... sim, sim, agora, agora mesmo!” (p.365).
Portanto, para ela, a chance de ressurreição sempre estará presente, ainda que haja um obstáculo (como a grande pedra que fechava o túmulo de Lázaro) ou que, por exemplo, existam fatores que pareçam impeditivos para isto (como o tempo, ela enfatiza os quatro dias da morte de Lázaro durante sua leitura). Assim, para ela, nem mesmo a morte é capaz de impedir a redenção.


·                     A não aceitação do casamento da irmã:


Raskólnikov posiciona-se contra o casamento de Dúnia por entender que se casaria com Lújin somente para salvar a ele e a mãe da pobreza. Para ele, a irmã estaria se vendendo, abrindo mão de sua liberdade, de sua autonomia, pois Lújin foi claro quando disse que entendia como esposa ideal aquela “mulher que considerasse o esposo como seu benfeitor” (p.78), sendo dele, então, completamente dependente.
A contrariedade a este casamento pode ser justificada pelo seguinte pensamento de Raskólnikov: “nem que comesse só pão preto e bebesse só água, não venderia sua alma, não trocaria sua liberdade moral pelo conforto, não a trocaria por todo o Scheswig – Holtei e, menos ainda, pelo senhor Lújin” (p.85).
Assim, este casamento representaria uma agressão, uma violação, um cerceamento ao que o ser humano tem de mais valoroso (já que é o que o diferencia dos animais irracionais): a sua liberdade, a sua autodeterminação moral.

·                     A “Teoria do Homem Extraordinário”:


Em sua teoria denominada “Teoria do Homem Extraordinário”, Raskólnikov afirma que as pessoas são divididas em dois grupos: um de ordinárias e outro de extraordinárias. As ordinárias são definidas como sujeitos comuns, subordinados às leis correntes e que não terão grandes feitos em toda a vida, devido à sua irrelevância. Já as extraordinárias (existentes em pouquíssima quantidade), são aquelas que não devem se submeter ao regime de normas impostas à sociedade, a elas é permitido fazer coisas que são proibidas aos demais (é o direito ao crime). Estes indivíduos teriam o direito de “permitir que sua consciência passasse por cima... de certos obstáculos, e unicamente naquela casa em que a realização de sua ideia (por vezes, salvadora para toda a humanidade, quem sabe) viesse a exigi-lo” (p.296).
A primeira categoria seria o presente e a segunda representaria o futuro (seres mais evoluídos). Como exemplos desta última, Raskólnikov cita, dentre outros, Isaac Newton, Ivan o Grande e Napoleão Bonaparte. A senhora usurária, Aliona Ivanovna, desta forma, seria ordinária (nas palavras de Raskólnikov, um “piolho”).
De acordo com esta teoria, pessoas excepcionais teriam, portanto, o direito de sacrificar quantos outros fossem necessários a fim de deixar um legado para toda a humanidade. Pode-se deduzir, ainda, que está nela implícita a ideia de utilitarismo, onde estas pessoas ordinárias poderiam ser eliminadas devido à sua inutilidade e insignificância (ou à grande utilidade das obras das extraordinárias). Ou seja, para esta linha de pensamento, tem mais valor aquele que é mais útil. Justificando o sacrifício dos outros (ordinários) em nome do bem social comum.

·                     Teoria socialista do crime:


A “Teoria Socialista do Crime” é apresentada a Raskólnikov por Razumíkhin, que explica: “Essa doutrina é conhecida, o crime é um protesto contra a anormalidade da ordem social e ponto, e nada mais que isso, e nenhum outro motivo é admitido, e nada.” (p.292)
Para os seguidores desta doutrina, o crime é cometido devido às desordens do ambiente opressor e que a virtude e o equilíbrio social são alcançados quando o crime desaparece e isto acontece ao passo que o ambiente fica organizado.
Os defensores desta opinião justificariam o crime de Raskólnikov afirmando que tudo foi fruto do meio em que ele vivia, isentando-o, pois, de arcar com as sequelas de seus atos, como se não tivesse sido portador do livre arbítrio ao ter tal conduta criminosa.

·                     Delírios de superioridade e o homem forte:


Raskólnikov idealizou um mundo inexistente e buscou implementá-lo (com sua teoria) acreditando ser esta uma missão benigna, outorgando a si mesmo, por isso, o direito de fazer o que quiser se entender que sua atitude trará resultados por ele julgados como  como bons para os demais seres humanos  e classificando-se como “extraordinário”.
Para ele, os fins estavam justificando os meios quando decidiu planejar e cometer o assassinato. Tentou isentar-se moralmente para escapar de seu julgamento interno. Conferiu-se um grau de superioridade em relação às demais pessoas.
Porém, pode-se dizer que o personagem foi presunçoso ao imaginar que poderia viver sem a culpa por este crime. Iniciou-se, no momento em que decidiu cometer o ato criminoso e perdurou-se após a concretização do plano, um imenso conflito em sua consciência moral (fator nem sempre presente, mas que serve como alerta de que há algo errado no comportamento). A “Teoria da Personalidade Humana” de Freud resume bem toda esta perturbação: o ID de Raskólnikov determina que mate a usurária, o EGO é o responsável por todo o alvoroço emocional e o SUPEREGO é o causador de todo o sentimento de culpa.
Raskólnikov almejava a sua liberdade, não queria “esperar pela 'felicidade universal'” … “queria viver por si mesmo” (p.312). Por isto tornou as vítimas de seu crime pessoas inferiores a ele, ou melhor, reduziu-as a seres tão desprezíveis que foram denominadas “piolhos”.
Não obstante, não foi suficiente para racionalizar a culpa. Raskólnikov, nesta situação, diz: “não matei lá uma pessoa, mas sim um princípio, sim, contudo, passar por cima não consegui, fiquei deste lado...” (p,312).
           
     
·                          O significado do crime para Sônia:


Pode-se dizer que há uma dicotomia na confissão do crime à Sônia. Raskólnikov entendeu que a confissão do crime primeiramente a ela era mais apropriada porque por um lado a moça aceitaria a verdade sem grande choque e horror, já que era uma pessoa desrespeitada pela sociedade e inveterada pecadora, não daria a si o direito de julgá-lo pela barbaridade realizada e, por outro lado, representava uma figura cristã, com o perdão arraigado em si, altruísta, sempre crente e esperançosa perante à viabilidade de salvação.

·                     O artigo - o investigador o lê e infere que Raskólnikov é o assassino:


Porfírio é um calejado investigador policial, baseia-se, principalmente, na razão, em silogismos.
Devido aos seus meios de investigação, assegurou-se em palavras do próprio criminoso, nos seus delírios que encaixavam em sua teoria.
Ao final do diálogo, fica implícito que a confissão para Porfírio representava a descrença de Raskólnikov na própria teoria, por isso a ele foi dada a chance de se entregar (o que para o policial era inevitável).

·                     O Renascimento – epílogo:


Acredita-se que a humanidade tem como preceito a capacidade de reflexão e o não o pensamento utilitário.
Por fim, Raskólnikov teve esta habilidade e concluiu que deveria ser castigado e arcar com as consequências de seus feitos.  Desligou-se de conceitos que anunciavam um novo homem em um corpo social que escondia um autoritarismo passível de gerar atrocidades.
Chega à conclusão de que seu experimento social não foi conforme almejou e entrega-se, devagar, à ideia de que cumprir o ônus do que fez é a melhor maneira de voltar à vida e ter o perdão. Ainda era capaz de sentir culpa (que equivalia a uma dor moral) e, gradativamente, com o apoio de Sônia e da religião, foi recuperando a sua humanidade até a redenção.

Bibliografia:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Martin Claret: São Paulo, 2013.